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Rituais do Caminho de Shikoku

Atualizado: 15 de abr. de 2020

Um comportamento de tão repetido, torna-se um hábito.


Sempre que acontece algum fato que me chama a atenção, procuro meditar sobre ele, e aprender o significado, e ver o que posso levar de lição para o futuro.


Viver a peregrinação no Caminho de Shikoku, trouxe-me a consciência de que temos de incorporar bons hábitos em nossa rotina do dia a dia. E ao transforma-los em rituais encontraremos a sabedoria, que nos fará crescer como pessoa humana.


Adquirimos a sabedoria quando vivenciamos, meditamos sobre as ações e corrigimos os nossos erros, bem como quando transformamos um simples hábito do dia a dia, em um prazeroso ritual.


E agora vou contar a vocês como cheguei a esta conclusão baseado nos rituais japoneses aprendidos durante a minha peregrinação no Japão.


A convite da minha amiga Margo, organizamos um grupo a peregrinação a pé por um trecho de 200 quilômetros no Caminho dos 88 templos sagrados, na Ilha de Shikoku.


Antes de ir para o Caminho a nossa guia mestre Margo, nos pediu para considerar no orçamento as compras das roupas e acessórios utilizados pelos peregrinos.


Eu observando a lista, achei que era desnecessário usar toda aquela parafernália para caminhar, e pensei comigo:


— "É jogar dinheiro fora comprar este monte de itens, sem utilidade alguma, que só servirá para atrapalhar a gente na caminhada".


Separei apenas os itens que achei que serviria para me identificar como um peregrino, deixando de fora, os com símbolo religioso. E comprei os seguintes itens:


  • um avental branco (a cor da morte), que simboliza o fim de um ciclo e abre caminho para que um novo possa começar.

  • o chapéu tradicional de bambu;

  • o cajado que é a reencarnação de Kobo Daishi;

  • e as velas, incenso como oferendas e

  • a credencial do peregrino.


Sentia como se estivesse comprando uma fantasia de carnaval, no entanto, tenho que reconhecer que até aquele momento eu não tinha incorporado o espírito de um peregrino japonês.


E assim, vamos seguir os rituais do Caminho dos 88 Templos Budistas.


Ritual nos Templos:

No primeiro dia no caminho, começa o processo de “transformação” que é a preparação para a performance do ritual.


Eu ainda dentro da loja, ao me ver no espelho, sinto incorporar o espírito de um “Henro”, como são conhecidos os Peregrinos do Caminho de Shikoku.


A cada um dos templos que visitava, me comportava como uma criança, eu aprendia repetindo o ritual que os demais peregrinos faziam, como segue:


  • Primeiro, à frente do portão de entrada, onde em de cada um dos lados ficam as imagens dos guardiões do templo, com as mãos unidas fazia uma reverência, abaixava levemente a cabeça em sinal de respeito e humildade. Como se tivesse pedindo:“com licença, posso entrar na sua casa?”

  • Lavava as mãos, utilizando um recipiente de cabo longo, primeiro a mão esquerda e depois a direita, em seguida colocava água na mão esquerda, enxaguava a boca e cuspia fora. A água que restava na vasilha, jogava sobre o cabo deixando-o limpo para outras pessoas fazerem o mesmo. O ritual simboliza a purificação do corpo;

  • Tocava o sino uma vez, sinalizando a minha visita ao templo;

  • Acendia 3 palitos de incenso e uma vela;

  • Colocava uma doação como oferenda que é para dar sorte ;

  • Fazia um pedido e rezava;

  • Colocava os dados pessoais e desejos no “osamefuda” (papeleta) e depositava em urna apropriada;

  • Novamente fazia uma reverência à frente da imagem do Buda e do Kobo Daishi, como forma de homenagear e agradecer por seus ensinamentos;

  • E por fim, colhia os carimbos e assinaturas na credencial de cada templo.



Este ritual foi repetido por 44 vezes, durante toda a nossa viagem pelos Caminhos do Japão.


Eu não posso esquecer de contar do principal ritual que fazia quando chegava a um templo, que é ir ao “banheiro” mesmo sem estar apertado, assim garantia que não passaria por apertos até chegar ao próximo destino.


Ritual nas Hospedarias:

Depois de caminhar 24 quilômetros por dia, a Margo, como uma boa líder, sempre esperava reunir todo o grupo no último Templo a ser visitado e seguíamos juntos para fazer o check-in na hospedaria.


Antes de entrar no local, eu retirava as botas e depositava-as em um local apropriado, demonstrado um gesto de respeito e de que não queria sujar o ambiente.


À porta, há chinelos disponíveis para uso interno e os dos banheiros são diferentes dos que são usados dentro da hospedaria.


Nos primeiros dias, eu me atrapalhei todo, principalmente quando ia ao banho, chegava na porta e trocava de chinelo para entrar. Na saída eu esquecia de fazer novamente a troca do chinelo, e só lembrava quando chegava à porta do quarto e voltava correndo para destrocar os chinelos.


Ainda bem que não foi só eu que fiz esta "barbeiragem".


Os japoneses acreditam que realizando este ritual, está evitando que energias impuras da rua quebrem a harmonia do lar.


Eu tenho um bom exemplo de dentro de casa: lembro do meu pai, ele sempre antes de entrar em casa tirava os sapatos e os deixava jogados na porta da sala.


— Guilherme, não deixe a casa bagunçada, vai que chega uma visita! — dizia a minha mãe reclamando por ter deixado os sapatos na porta da sala de casa.


Ritual do banho:

Nos Onsen e nas casas de banho, eu tinha que obedecer um ritual para tomar banho:


No local há vários chuveiros alinhados nas paredes, com banquinhos e bacias, um ao lado do outro.


Despido, sentava em um dos banquinhos e com uma toalha pequena, menor que a uma de rosto, colocava sabonete líquido e esfregava o corpo todo. Tinha de me lavar muito bem antes de entrar na banheira (ofurô).


O banho serve também para estreitar laços familiares e de amizade, o local é compartilhado com as outras pessoas, separado os homens das mulheres, e de regra, deve-se manter a água e o local sempre limpo e evitar de fazer barulho.

Agora se imagine depois de uma longa caminhada ficar relaxando e regenerando as energias, aquecendo o corpo dentro de uma banheira de água bem quente.

Depois do banho eu me vestia com um “Yukata”, uma espécie de kimono de algodão mais simples que você pode transitar pela hospedaria.


Todos os dias na hora do banho eu repetia o mesmo ritual. E depois de um maravilhoso banho, seguia para a sala de jantar.


Ritual das Refeições:

Quando chegava na sala preparada para o jantar, vestido com o kimono, eu tentei sentar no chão na posição “seiza”, dobrando as pernas sob o corpo e apoiado o bumbum nos calcanhares; reconheço que é uma posição difícil e desconfortável para quem não está acostumado.


Em menos de cinco minutos na posição as minhas pernas adormeceram, a solução foi sentar em cima de uma almofada.


Assim que sentei à mesa, recebi um lenço umedecido para limpar as mãos, é hábito dos japoneses também limparem a testa e o rosto inteiro.

A mesa uma bandeja com porção de arroz, peixes, frutos do mar, algas marinhas como wakame e nori, tofu e shoyu, além de caules subterrâneos como bardana, gengibre e wasabi.


Um visual lindo, tudo bem elaborado com muito amor e carinho, apenas um pouquinho de cada.


Em outras caminhadas longa que fiz depois de um belo banho, eu estava acostumado a comer um “prato de peão” , para matar a fome.


No Japão eu olhei pela primeira vez o meu prato e a unica coisa que passou na minha cabeça foi:


  • É só isto?

  • É pouca comida!

  • Eu vou morrer de fome!”.


No entanto, depois de comer percebi que foi o suficiente, não precisava comer mais do que estava sendo oferecido e saí bem satisfeito da sala de refeições.


No café da manhã japonês também é servido o arroz junto com missoshiru e peixe grelhado.


As seis horas da manhã eu olhava para a bandeja de comida e não sentia um pingo de vontade de comer, mas eu sabia que precisava comer para aguentar percorrer o caminho.


E passei a usar uma técnica para despertar o paladar: primeiro salgava a boca bebendo um pouco do missoshiru e assim conseguia comer o arroz com peixe.


Apesar de ser tudo muito nutritivo e saboroso, eu ainda sentia muita falta de tomar um simples café, com pão francês e manteiga.


Ritual do chá:

Antes e durante as refeições é servido o chá verde que serve para preparar o paladar para o próximo prato.


Deve-se encher o copo dos seus amigos primeiro para somente depois se servir, e se não quiser mais beber, não deve esvaziar o seu copo.


Em todos os lugares sempre fomos recepcionados com chá verde nos quartos ou nas salas comuns para os hóspedes.


Ritual da arte de se vestir:

No Japão tivemos um dia inteiro usando um tradicional kimono japonês, utilizado para ir nas festas.


Todos em cores vibrantes, cada peregrina escolheu a sua roupa, os sapatos, os acessórios. A mulheres prepararam o cabelo, colocaram enfeites e fizeram a maquiagem.


É uma arte de vestir um kimono e dá muito trabalho, ele deve ficar bem apertada no abdômen mantendo ereta a postura da pessoa.


O kimono que escolhi havia muitos detalhes, e tive muita dificuldade para prender a faixa que fica em volta da cintura.


Eu experimentei usar um chapéu, mas fiquei bem mais caracterizado e parecendo um monge mostrando a minha tradicional careca.


Para conseguir caminhar com o abdômen amarrado e com as sandálias, precisei de um tempo para me adaptar e sentir-se confortável com a roupa, que só com a prática foi que consegui ficar o dia inteiro usando o kimono.


Depois pronto, me olhei no espelho e incorporei o espírito do verdadeiro Samurai, só faltou postar a espada para desafiar outro guerreiro.


Ritual de entrega do certificado:

Após concluir os últimos 100 quilômetros do Caminho, em uma cerimônia organizado pela Associação do Caminho de Shikoku recebemos o certificado de conclusão da peregrinação.

Como manda o ritual, recebi-o segurando com as duas mãos, um gesto que indica gratidão e respeito pela outra pessoa.


Estes rituais são apenas alguns dos hábitos e costumes japoneses que marcaram o meu Caminho de Shikoku, tem muito outros, tudo que temos que fazer exige um ritual a ser obedecido.

Um comportamento, de tão repetido, torna-se um hábito. Se fizer com sabedoria as transformamos em um ritual.

Eu nunca tinha vivido uma situação em que tivesse de realizar tantos rituais, e ao viver cada um deles fui compreendendo os seus significados e incorporando-os na minha rotina.


Os rituais é uma forma de estabelecer uma “comunicação”, onde todos os sentidos são estimulados: a Imagens, cheiros e sons evocando memórias vívidas de rituais passados, entre gerações, conectando o passado com o presente e o futuro.


Quando as práticas dos rituais passam de geração em geração, causa uma “estabilização”, que serve para educar, regular o comportamento e manter certa previsibilidade na vida das pessoas, num mundo tão imprevisível.


Segundo os japoneses, os rituais nos aproximam da sabedoria e do conhecimento necessários para alcançar a iluminação.


Diante desta experiência vivida no Japão, desliguei o piloto automático e passei a prestar mais atenção nas atividades que realizo e nas coisas a minha volta e transformei as atividades rotineiras “obrigatórias” em “rituais”.


Assim o dia a dia se torna mais leve, deixa de ser uma obrigação para ser tornar algo prazeroso e assim passo a fazer tudo com mais carinho e amor.


Agora ao realizar uma atividade, medito e procuro descobrir o quê, para quê, por que e para quem estou fazendo alguma coisa.


E frente a pandemia alterei os meus costumes, transformando tudo em rituais, comecei com as tarefas mais simples do dia a dia como: acordar, alongar, cozinhar, almoçar, tomar banho, arrumar a casa e cuidar das plantas, etc… e também a forma de cumprimentar as pessoas, a limpeza das mãos, os cuidados com a higiene entre outros hábitos.


Realizando como um ritual todas as minhas atividades diárias, consegui organizar melhor o meu tempo, e já estou obtendo bons resultados, como por exemplo,


Diariamente dedico uma hora para realizar o ritual da escrita e escrevo sobre as minhas experiências do meu caminho, com objetivo de compartilhar com os amigos e para fazerem o mesmo.


Vamos lá?


Bom Caminho para sua Vida!


Um grande abraço!


Paulo Bertechini





Obs: Se quiser viver a experiência e participar da próxima edição do Caminho de Shikoku no Japão, entre no site www.peregrinosemfronterias.com.br , registre o seu interesse que encaminharemos para entrar em contato com Margo.

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